Tenso, muito tenso

14:49

Não é de hoje que a TV produz programas enlatados e (in) devidamente importados dos Estados Unidos, fonte maior de besteiróis televisivos em nível mundial.


A variedade de exemplos é tão grande que parece até encheção de lingüiça comentar algo sobre mais um dentre tantos outros programas de péssimo gosto exibidos por nossas emissoras.



Os chamados “reality shows” traduzem aquilo que as sociedades de outrora evitavam ao máximo: a exposição pública da intimidade individual e familiar. Se em tempos remotos era inconcebível a idéia de alguém se expor diante de toda a sociedade (até mesmo por razões tecnológicas), hoje se tornou tão comum que passamos a ver com naturalidade absurdos, como por exemplo, a (des) humanização do ser humano em provas que desafiam todas as concepções de “certo” e “errado” pré-determinadas sociologicamente.



Segundo Adorno e Horkheimer, em "Dialética do esclarecimento" (1980), a indústria cultural transformou a cultura em mercadoria, que como qualquer outro produto do sistema capitalista recebeu o tratamento de padronização, produção em série e utilização de recursos tecnológicos. Com isso, a idéia de cultura enquanto atitude cultivada que tinha o papel de levar o homem à reflexão passa a ser desprezada, já que a indústria cultural rebaixando-a à mercadoria tira-lhe a capacidade iluminista e a função crítica, levando-a também ao desprezo o papel filosófico-existencial.


Mas os reality shows vão além da desvalorização cultural. Trata-se do rompimento de valores humanos como dignidade, a tal, que nos faz melhores que os demais animais, juntamente com a capacidade de raciocínio e prudência.

A bola da vez é o programa Hipertensão, da rede Globo. Não dá para acompanhar um minuto sequer do tal programa sem que isso lhe revire a boca do estômago e lhe dê ânsia de vômito. São jovens vazios em busca de “fama” ingerindo poções feitas de óleo, fígado cru e vermes (Isso mesmo, vermes!). Ou ainda, desafiando a própria segurança, ao conviver com animais peçonhentos ou simplesmente nojentos, asquerosos.


Nestes programas não existem pessoas, existem produtos. É a coisificação do homem, prevista por Marx, mas de uma forma bem mais complexa, bem mais agressiva, por que já não é em detrimento da máquina ou da força de trabalho, mas por puro desejo de tornar-se visto, torna-se “brinquedo” nas mãos de milhares de telespectadores sedentos por banalização humana e entretenimento indigesto.



Os telespectadores por sua vez, também não passam de “coisas”, ou na verdade, “números” (audiência e é claro, lucro), todos ao bel prazer de uma “máquina” maior e mais poderosa: a mídia.



É importante ressaltar que a partir do momento em que aceitamos inertes à inclusão de conceitos e comportamentos em nossa vida, sem sequer pesarmos os prós e contras, estamos nos tornando marionetes, meros replicadores de ilusões.



Como escreveu Jean-Philippe Toussaint, em seu romance “A televisão” - "Uma das principais características da televisão quando ela está ligada é nos manter continuamente despertos de modo artificial. Ela emite permanentemente sinais ao nosso cérebro, pequenos estímulos de toda qualidade, visuais e sonoros, que despertam nossa atenção e mantêm nossa cabeça alerta. Mas assim que nossa mente, alertada por esses sinais reúne forças para refletir, a televisão já passou para outra coisa, novos estímulos, novos sinais tão estridentes quanto os anteriores, ainda que com o tempo, em lugar de se manter desperta por essa sucessão sem fim de sinais que a exaustem, nossa mente (...) antecipe, então, a natureza real dos sinais que recebe e, em vez de mobilizar novamente suas forças para a reflexão, ao contrário, relaxa e abandona-se a uma vagabundagem passiva ao sabor das imagens que lhe são apresentadas".



O "respeitável" público que assiste aos reality shows não curte apenas a possibilidade de acompanhar a intimidade do outro, de ver o corpo, o grotesco, de intervir na vida dos participantes, eliminando uns, e exaltando outros, ele curte ver o emocionalismo barato que o programa explora, a "espontaneidade". É a lamentável teatralização da "vida real".


Publicado originalmente em "agorabinhi" em setembro/2010

You Might Also Like

0 comentários